Portugal e a Europa
Parece que foi ontem que te conheci, mas já lá vão mais de duas décadas. Ainda não sabia o que era viver. Apresentaste-te como a possibilidade mais próxima para me mostrar os caminhos tortuosos da vida.
Rapidamente, mas cautelosamente fui cedendo aos teus encantos, às tuas invectivas. Sabia que não iria ser o único a amar-te, a ser amado. Olhava para nos primeiros anos como um filho olha para a sua mãe. Tomavas conta de mim, cuidavas dos meus passos, impedias que caísse sem ter aprendido algo. Acarinhavas-me, seguias-me para onde quer que fosse. Eras a minha sombra. Não tinhas muito tempo para mim, é verdade, mas eu sabia que estavas ocupada com aqueles senhores que falavam uma língua estranha. Não percebia o que diziam, mas via a tua cara triste depois dos encontros. No entanto trazias dinheiro para casa. Sabias que te estavas a vender, mas nunca quiseste admiti-lo. O dinheiro falava mais alto. E o outro queria que te vendesses. Não te importavas. Como éramos pobres nessa altura. Aceitavas todas as esmolas que te davam, sem perceberes que eles só te queriam usar e deitar fora. Apenas eu te amava. Mas não te dava o que querias.
Com o passar dos anos, fui abrindo os olhos, percorrendo os meus caminhos. Foi assim que quiseste. Ensinaste-me a andar, mas depois teria eu que conhecer a vida. Entretanto via como os senhores de cabelos escuros e sotaques estranhos que te apalpavam. Iam ter com o outro que rondava a esquina, enquanto os via a aproximarem-se de ti. Chegavam-se a ti, e logo te abrias que nem uma prostituta velha e usada que precisa do guito para a dose diária. Tornaste-te dependente deles. Cada vez querias mais. Mas também soubeste usá-los. Fodias com vontade e gosto, mas pedias bom dinheiro por isso. E eles davam-to. Dizias que era para entrar para um programa de desintoxicação. Que ias deixar de estar ali, que querias ser como eles. Mas o vício já estava entranhado. A droga já te corria nas veias, o teu sangue estava infestado de substâncias dopantes, que te faziam esquecer o mundo em que vivias. Passavas os dias pedrada, nas esquinas, à espera de encontrar mais um para poderes viver mais uns períodos de euforia. Como eram bons esses pequenos riachos em que nos banhávamos. Esquecíamos tudo, mas o rio corria. E o mar não parava de crescer.
Eu olhava para ti. Tinha pena, mas ainda não podia fazer nada. Prostituías-te por ruas tingidas a azul e amarelo. Não entendia muito bem o que se passava à minha volta. Olhava para ti, e via-te no chão, a definhar, a tremeres constantemente, a seres atacada por convulsões que te obrigavam a vomitar o almoço do dia seguinte. Nem para ir à casa de banho te dignavas a saíres da pocilga. Abrias as pernas e lá mijavas e cagavas para dentro do quarto. De início ele ainda te ajudava a limpar, mantinha-te a cama apresentável, escondia o lixo debaixo dela. Mas os dejectos começaram a boiar em poças de água amarela. Agora, apenas a varanda interessava. Era isso que eles viam. E era isso que interessava manter limpo e asseado. Sem o dinheiro deles não teríamos sobrevivido. E era o outro que te vendia, que negociava preços e posições.
De mim nunca quiseste nada. Pedes-me para te ajudar, para te ajudar a emergires da chafurda, mas também a mim cobras dinheiro. Eu queria fazer amor contigo. Mas apenas queres foder por droga.
Já nem sabia onde começava e acabavas. Foste encolhendo com a idade. Os teus ossos enfraqueceram, os teus seios redondos são duas peras murchas. A tua epiderme doce e veludosa está cheia de cicatrizes e rugas. Está preta a tua pele. És o esqueleto daquele corpo roliço que outrora amei. Vendeste-te a eles. Agora percebo o que eles dizem. Quiseram usar-te e tu deixavas. Davam-te dinheiro para ficares em casa sem trabalhar. E tu aceitaste sem saber que eles cresciam e escondiam tudo para dar aos filhos deles. Pensavas que eles queria o melhor para ti, mas eles sugaram-te até à última gota de dignidade. Agora jazes aí, o teu corpo crepita de necessidades. Agora chegou a vez dele. Agora quer ser ele a encontrar-te nas esquinas e violar-te, tirar tudo o que tens, deixar-te despida, nua, com pena de ti própria. Quer espancar-te, arrastar-te pelas ruas, pontapear-te. Quer ver-te a jorrar sangue pela boca, arrancar-te órgão por órgão, estômago, fígado, intestinos. Mas deixar-te o coração. Quer-te viva. Quer que eu tenha algo para amar em ti. Não compreende que eu irei sempre amar-te, que te quero ajudar-te. Ele não deixa, não me apoia, não quer. Quer que eles tenham pena de ti, que esqueçam as outras loiras que conheceram agora. Estão fascinados por elas, dão-lhes tudo. Mas já lhes sugámos o tutano. Já não há mais nada.
Eles hão-de voltar.
Rapidamente, mas cautelosamente fui cedendo aos teus encantos, às tuas invectivas. Sabia que não iria ser o único a amar-te, a ser amado. Olhava para nos primeiros anos como um filho olha para a sua mãe. Tomavas conta de mim, cuidavas dos meus passos, impedias que caísse sem ter aprendido algo. Acarinhavas-me, seguias-me para onde quer que fosse. Eras a minha sombra. Não tinhas muito tempo para mim, é verdade, mas eu sabia que estavas ocupada com aqueles senhores que falavam uma língua estranha. Não percebia o que diziam, mas via a tua cara triste depois dos encontros. No entanto trazias dinheiro para casa. Sabias que te estavas a vender, mas nunca quiseste admiti-lo. O dinheiro falava mais alto. E o outro queria que te vendesses. Não te importavas. Como éramos pobres nessa altura. Aceitavas todas as esmolas que te davam, sem perceberes que eles só te queriam usar e deitar fora. Apenas eu te amava. Mas não te dava o que querias.
Com o passar dos anos, fui abrindo os olhos, percorrendo os meus caminhos. Foi assim que quiseste. Ensinaste-me a andar, mas depois teria eu que conhecer a vida. Entretanto via como os senhores de cabelos escuros e sotaques estranhos que te apalpavam. Iam ter com o outro que rondava a esquina, enquanto os via a aproximarem-se de ti. Chegavam-se a ti, e logo te abrias que nem uma prostituta velha e usada que precisa do guito para a dose diária. Tornaste-te dependente deles. Cada vez querias mais. Mas também soubeste usá-los. Fodias com vontade e gosto, mas pedias bom dinheiro por isso. E eles davam-to. Dizias que era para entrar para um programa de desintoxicação. Que ias deixar de estar ali, que querias ser como eles. Mas o vício já estava entranhado. A droga já te corria nas veias, o teu sangue estava infestado de substâncias dopantes, que te faziam esquecer o mundo em que vivias. Passavas os dias pedrada, nas esquinas, à espera de encontrar mais um para poderes viver mais uns períodos de euforia. Como eram bons esses pequenos riachos em que nos banhávamos. Esquecíamos tudo, mas o rio corria. E o mar não parava de crescer.
Eu olhava para ti. Tinha pena, mas ainda não podia fazer nada. Prostituías-te por ruas tingidas a azul e amarelo. Não entendia muito bem o que se passava à minha volta. Olhava para ti, e via-te no chão, a definhar, a tremeres constantemente, a seres atacada por convulsões que te obrigavam a vomitar o almoço do dia seguinte. Nem para ir à casa de banho te dignavas a saíres da pocilga. Abrias as pernas e lá mijavas e cagavas para dentro do quarto. De início ele ainda te ajudava a limpar, mantinha-te a cama apresentável, escondia o lixo debaixo dela. Mas os dejectos começaram a boiar em poças de água amarela. Agora, apenas a varanda interessava. Era isso que eles viam. E era isso que interessava manter limpo e asseado. Sem o dinheiro deles não teríamos sobrevivido. E era o outro que te vendia, que negociava preços e posições.
De mim nunca quiseste nada. Pedes-me para te ajudar, para te ajudar a emergires da chafurda, mas também a mim cobras dinheiro. Eu queria fazer amor contigo. Mas apenas queres foder por droga.
Já nem sabia onde começava e acabavas. Foste encolhendo com a idade. Os teus ossos enfraqueceram, os teus seios redondos são duas peras murchas. A tua epiderme doce e veludosa está cheia de cicatrizes e rugas. Está preta a tua pele. És o esqueleto daquele corpo roliço que outrora amei. Vendeste-te a eles. Agora percebo o que eles dizem. Quiseram usar-te e tu deixavas. Davam-te dinheiro para ficares em casa sem trabalhar. E tu aceitaste sem saber que eles cresciam e escondiam tudo para dar aos filhos deles. Pensavas que eles queria o melhor para ti, mas eles sugaram-te até à última gota de dignidade. Agora jazes aí, o teu corpo crepita de necessidades. Agora chegou a vez dele. Agora quer ser ele a encontrar-te nas esquinas e violar-te, tirar tudo o que tens, deixar-te despida, nua, com pena de ti própria. Quer espancar-te, arrastar-te pelas ruas, pontapear-te. Quer ver-te a jorrar sangue pela boca, arrancar-te órgão por órgão, estômago, fígado, intestinos. Mas deixar-te o coração. Quer-te viva. Quer que eu tenha algo para amar em ti. Não compreende que eu irei sempre amar-te, que te quero ajudar-te. Ele não deixa, não me apoia, não quer. Quer que eles tenham pena de ti, que esqueçam as outras loiras que conheceram agora. Estão fascinados por elas, dão-lhes tudo. Mas já lhes sugámos o tutano. Já não há mais nada.
Eles hão-de voltar.
escrito por Anónimo a 7:41 da tarde
1 Pós e Contas:
Violento. Não fui eu que o disse, mas alguém que leu o texto primeiro e me deixou de sobreaviso. Contudo,não me surpreendem as tuas palavras arremessadas como tiros para o papel-ecrã. Conheço mais dessa tua veia "pulsante"(à falta de melhor adjectivo) do que o que tu julgas. O "senhor insensível" também se deixa tocar;)e isso é visível na forma como, neste texto, consegues usar uma linguagem esteticamente emocional apesar da dureza do narrado e de ser muito mais fácil descrever estádos eufóricos e histórias com happy ending.
Vou passar aos highlights.
O primeiro, só para implicar contigo: o uso da "f" word.Hmm...remniscências intertextuais de tropelias no elevador?:p
Segundo: "Passavas os dias pedrada, nas esquinas, à espera de encontrar mais um para poderes viver mais uns períodos de euforia. Como eram bons esses pequenos riachos em que nos banhávamos. Esquecíamos tudo, mas o rio corria. E o mar não parava de crescer." Vais ter de me explicar depois melhor isto (se é que ela existe;)), esta lógica de gradação...Acho que não entendi.
Terceiro: "Olhava para ti, e via-te no chão, a definhar, a tremeres constantemente, a seres atacada por convulsões que te obrigavam a vomitar o almoço do dia seguinte." Imagem e conclusão de frase perfeitas! Esta aplaudi aqui da cadeira:)
Quarto: "Os teus ossos enfraqueceram, os teus seios redondos são duas peras murchas. A tua epiderme doce e veludosa está cheia de cicatrizes e rugas. Está preta a tua pele. És o esqueleto daquele corpo roliço que outrora amei." Palmas outra vez!:)Antítese esqueleto/roliço (que pela contiguidade das duas palavras na frase a torna ainda mais central e evidente), muito bem conseguida! (Gosto muito do adjectivo roliço...e castiço, também!;))Veludosa...a erudição no seu expoente máximo!És um rapaz de dicionário, já estou a ver;)
Quinto: "(...)o teu corpo crepita de necessidades." Belíssima imagem!:) E o fácil que é decalcar de uma lareira acesa, com a lenha a crepitar, o corpo gasto e cansado de uma mulher cuja pele não esconde os anos e sacrifícios (nesta quase que aplaudia de pé;)).
Bom, e termino porque senão daqui a pouco faço o comment maior do que o teu post. Acabo dizendo que o título poderia ser uma coisa mais específica e mais acutilante. Deixo a decisão de o alterar À tua veia criativa;)
Sugestão de uma música (para ouvir eventuamente no fim da leitura): "Esquina de rua" - interpretado pelo (GRANDIOSO) Camané.
xxRita
17/8/05 01:39
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