Reportando-me àquilo que já me parece distante, relembro a infância protegida e tutelada por essa entidade onmipresente que são os pais.
Durante muito tempo achei que não precisaria de fazer nada, que como por arte mágica tudo seria realizado, que os pais tinham a obrigação de me dar o que eu lhes exigisse. O dia em que descobri que o menino jesus [em minha casa dizia-se menino jesus] não existia foi o dia em que aquele meu mundo acabou. Foi aí que eu aprendi que teria sempre que optar, que fazer escolhas, que só assim poderia reclamar a minha individualidade, a minha liberdade. Foram dias, talvez semanas, muito violentas, como todas as transformações acabam por ser. Chorei muito.
Depois disso toda a família ficou com um particular orgulho em mim, dado que era uma criança muito autónoma (quando se é criança nunca se pode ser verdadeiramente independente) e muito responsável, capaz de tomar decisões e assumir as suas consequencias (quer positivas, quer negativas). No entanto sentia-me protegia pela ideia da existência de Deus que zelaria autruisticamente pelos meus interesses, que tomaria as opções mais correctas para mim, opções que eu achava ser incapaz de tomar.
A partir do momento em que percebi que esta crença inabalável em Deus estava completamente minada, e que partia do pressuposto de que era inquestíonável, e ao mesmo tempo limitadora da minha liberdade de acção, o mundo voltou a ruir. Foram longos meses de recuperação.
No entanto mantive a confiança que seria possível que uma outra entidade onmipresente nas nossas vidas poderia fazer as opções que eu me achava incapaz, ou melhor dizendo achava que tinha a obrigação de fazer essas opções. Implicitamente estive disposta a abdicar da minha liberdade de escolha para que essa entidade agisse, mesmo contra os meus interesses, um pacto social sem clausulas de desvinculação.
Mais uma vez apercebo-me que esta crença começa a ruír, que está de alguma forma ferida de legitimidade, que me limita a capacidade de optar de forma livre. Mais uma vez o meu mundo está prestes a terminar, e a criança chora, chora muito...